Olá, Estranhos! No texto deste mês vamos falar um pouco da importância da casa de farinha e a sua importância para nossa cultura alimentar. Para isso é preciso compreender o papel simbólico do ato de comer ou de produzir o alimento de um determinado grupo. Influenciada por questões ambientais, sociais e históricas, as práticas em torno da alimentação ultrapassam as simples necessidades biológicas e são tomadas como um importante elemento de análise antropológica. Para Roberto DaMatta (1986), a “comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele que o ingere”.
A cultura da farinha é um belo exemplo das relações sociais e culturais de um determinado alimento. O ato de se produzir e consumir a farinha, está cercado de uma série de relações entre os atores em volta da cadeia produtiva deste produto. Desde o ato de plantar até chegar à mesa do consumidor, essas relações se tornam presentes dentro do dia a dia da comunidade, em especial do paraense.
A farinha tem uma importância muito grande dentro da alimentação do povo brasileiro, conhecida como o “Pão do Brasil”, no primeiro momento, a mandioca foi vista pelos colonizadores portugueses como “Inhame”, uma espécie de tubérculo muito consumida pelo povo recém-chegado.
“Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam.” (Retirada da Carta de Pero Vaz de Caminha redigiu ao rei D. Manoel)
A mandioca, nome científico Manihot esculenta crantz, exerce um papel importante dentro da dieta do povo brasileiro, em especial o amazônida, isso ocorre devido ao seu alto valor energético. O Brasil é um dos maiores produtores de mandioca e seus derivados, e também um dos principais consumidores, com um consumo de raízes per capita de 42,9kg/hab/ano, enquanto o consumo per capita mundial foi de apenas 16,4kg/hab/ano (CHISTE & COHEN, 2006).
Segundo a lenda, a raiz surgiu quando a filha do chefe indígena engravidou sem contato com um homem, daí nasceu uma menina com uma beleza incrível, a qual foi dada o nome de Mani, que acabou morrendo após um ano, sem doença ou dor. Ela foi enterrada dentro da oca, e do túmulo surgiu um arbusto, onde encontraram raízes que eram as primeiras mandiocas, fortificantes e poderosas. Mandioca, que vem de Mani-Oca, ou a casa de Mani. (CASCUDO,2004)
A mandioca produz um número incrível de subprodutos, segue uma linha de produção bem definida. Do ato de descascar as raízes que são lavados na beira do igarapé, o que faz com que seu plantio e fabricação de farinha se localize muitas vezes próximos a esses braços de rios. Os indígenas costumavam ralar pelo atrito de espinhos, dentes de animais, cascas de ostras, o que com o passar do ano, foram evoluindo para raladores de metal, algumas vezes adaptados.
Cabia as “cunhãs”, mulher indígena, o trabalho com o “tipiti”, geralmente tecido de cipó, ou cascas de palmeira, elas apertam de tal forma, a sair o tucupi, que são aparadas por grandes panelas. (JOÃO DANIEL, citado por CRUZ,2013). Cabia também a “cunhã” o preparo da “manipoi”, a goma utilizada para fazer a base do tacacá, que se depositava no fundo da primeira água, ou como é conhecido de “manipueira”, que secada ao sol vira os “beijus” escuros ou tapioca pardas, “saboronga” ou “sabonga”, e quando não seca ao sol, serviu durante muito tempo para engomar as roupas. Essa farinha preparada pelo indígena se difere da produzida hoje na Amazônia, pela sua carteirista mais grumosa, muito pela ausência do ralador mais eficiente e da prensa, ao contrário da farinha fina e uma massa mais compacta que vemos hoje (CASCUDO, 2004).
Lembro das várias vezes, quando criança, minha avó preparava o mingau da farinha, mas especificamente do Carimã, etapa em que apresenta uma quantidade muito grande de amido, ou seja, um mingau mais grosso e consistente. Do carimã, também surgem os bolos adaptados pela mulher portuguesa - responsáveis por boa parte da doceira produzida no Brasil, já que os índios não tinham costume de consumir açúcar-, substituindo assim a farinha de trigo. Um exemplo desse, é o bolo de macaxeira feito com a massa de mandioca brava. Lembro também dos bolinhos feitos com farinha mais grossa, e frita em óleo ou gordura de porco, e que muitas vezes acompanhavam um café quentinho.
Fazendo uma relação com o espaço social da família, deu-se o nome de “Casa de Farinha”, porque ali é uma extensão das atividades familiares. (FREITAS FILHO, 2013). Segundo Linhares e Santos (2014), essa relação se dá através de uma complexa teia de conhecimentos dessa cultura, através de uma partilha recíproca de sua aprendizagem. Vivenciada através da sociabilidade cultivada dentro da casa de farinha, deixando de ser apenas um local de trabalho, mas sendo um ponto de encontro que reúne a família com os parentes e vizinhos que ali chegam para conversar e acabam contribuindo com as atividades ali realizadas. Como relata Linhares e Santos (2014): “todas as pessoas presentes participam destas conversas através das quais a informação se sociabiliza, tornando-se um importante centro de troca de ideias sobre a vida e os problemas de todo o grupo”.
Um dos itens mais importante na produção da farinha, o forno, foi descrito por Luiz da Câmara Cascudo (2004).
“Para operar, depois de convenientemente aquecido o forno, a forneira lhe vai pondo a pouco e pouco a massa da mandioca ralada e espremida no tipiti, distendendo-a e remexendo-a rapidamente com a pá para impedir que se agrume e obter que cozinhe toda por igual. Nisso está a habilidade da forneira, que deve saber moderar o fogo para impedir que a fornada queime, e conservá-lo bastante ativo para, secando ligeiro, evitar os grumos e conseguir uma farinha fina, dura e convenientemente torrada para poder durar muito tempo empaneirada”. (CASCUDO,2004)
Devido às inúmeras atividades que envolvem o preparo da farinha e o grande esforço físico empregado na produção, necessariamente coletivo e culturalmente acaba envolvendo todos os membros da família, não existindo divisão entre homens e mulheres, ambos realizam as mesmas atividades e vão se alternando durante o processo.
A farinha e seu processo de fabricação se tornaram tão importantes para a cultura do paraense, não pelo ato de comer, mas pela sua grande relação social. Por isso, o ato de usar farinha nos nossos pratos está carregado de histórias e de vidas que se entrelaçam para levar a farinha à mesa.
É importante valorizar esse produto, e tem que ter lugar de destaque em nossos preparos. Não como apenas adorno, mas como fonte de grande criatividade. Podemos, fazer bolinho, pirão, farofa, empanado e por aí vai, o céu é o limite, aí está a nossa criatividade, vamos dá asas a ela, e deixar a farinha voar para os quatro cantos desse mundão. Até a próxima e vamos criar!!
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Antologia da alimentação no Brasil. Rio de
Janeiro: Livros Científicos Técnicos, 1977.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3 ed. São
Paulo: Global, 2004.
CHISTÉ, Renan Campos; COHEN, K. de O. Estudo do processo de fabricação da farinha de mandioca. Embrapa Amazônia Oriental-Documentos (INFOTECA-E), 2006.
DaMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal. 32 ed. Rio de Janeiro: Record. 1997.
FREITAS FILHO, Armando. O caso da casa de farinha. MELO NETO, João Cabral de. Notas sobre uma possível A casa de farinha. Org. Inez Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 7-13, 2013.
LINHARES, Anny da Silva; DOS SANTOS, Clarissa Vieira. “A casa de farinha é a minha morada”: transformações e permanências na produção de farinha em uma comunidade rural na região do Baixo Tocantins-pa. 2014.
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