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Sobre mangas e mangueiras: minhas memórias gustativas e afetivas

Hoje aqui em Araí e debaixo de uma mangueira revisitei minha infância, minha história, minha trajetória e minha identidade, a qual é de “Bicho do Mato.”

Crédito da foto: Arquivo pessoal.


O subtítulo deste texto faz referência às minhas memórias, que, no dia 5 de abril de 2023,  foram aguçadas quando, por volta de 8h da manhã e debaixo de alguns leves pingos de chuva ou, como dizem meus conterrâneos araienses, debaixo de um chuvisco, recebi da querida amiga e conterrânea Miroca (apelido carinhoso da Germiniana) um saboroso convite: “Miguel, bora ali juntar e apanhar mangas.” Convite imediatamente aceito, conforme testemunha a imagem anterior.


​​Preciso antes dizer que a mangueira em questão povoa o quintal do professor Ricarlos.  Inclusive, elas marcam quase todos os quintais e também as paisagens dos territórios araienses.  Então, como a chuva ameaçava cair, achamos melhor não subir na mangueira que estava um tanto lisa e nos oferecia certo perigo de escorregar. Adotamos a estratégia de apanhar as mangas com uma vara de bambu, cujo foco era acertar as famosas mangas “oriscas”, ou seja, as amarelinhas.


Crédito da foto: Arquivo pessoal.


Crédito da foto: Arquivo pessoal.


Então, foi em meio aos pingos dos chuviscos que eu e Miroca garantimos naquela manhã um paneiro abarrotado de mangas. Muitas delas eram, como dizem os araienses, oriscas.


Crédito da foto: Arquivo pessoal.

​​Antes de prosseguir, preciso dizer que sou nativo da comunidade de Araí, de onde migrei faz mais de 30 anos para Ananindeua, região metropolitana de Belém, lugar ondetambém moro ainda hoje. Digo também porque vivo ora em Ananindeua orana querida Araí. Certamente, é onde estão meu coração, minhas histórias e minhas memórias afetivas e quiçá as gustativas, aquelas que mais contam sobre mim, as quais emanam das minhas experiências vividas, outrora, lá, em minha querida Araí, a qual está geograficamente localizada no meio rural de Urumajó (hoje Augusto Corrêa), na Amazônia Atlântica, do nordeste paraense.  


Dentre as experiências vivenciadas quando criança em Araí, certamente aquelas atravessadas pela manga marcam saborosamente minha trajetória, povoando de modo muito singular minhas memórias gustativas e afetivas, as quais, hoje e debaixo da mangueira do Ricarlos foram deliciosamente acionadas, fazendo-me lembrar de como as mangueiras e as mangas figuravam emblemáticas vivências que emaranhavam meu viver, conforme descrevo no que segue:


Durante o inverno amazônico, que, com regularidade, ocorre de janeiro a junho, costumávamos (eu, minhas irmãs, irmãos primos etc.) madrugar, acordar bem cedinho, às 5h da manhã. Madrugávamos com um propósito já acordado no dia anterior, a saber, para juntar manga nas mangueiras que lindamente “povoavam” os quintais de muitas casas da comunidade. Dentre essas mangueiras havia uma que ocupava lugar primeiro em nossa preferência, falo da mangueira do tio João. Essa preferência tinha razão de ser: era a mangueira que nos oferecia as mais desejadas e saborosas mangas: as oriscas, ou seja aquelas que, de tão maduras, se mostravam amarelinhas, indicando que estavam próprias para serem degustadas, mas não de qualquer maneira: por essas paragens da Amazônia  as mangas oriscas são saboreadas ora com farinha ora, como dizem os araienses, elas são chupadas.


Crédito da foto: Arquivo pessoal.


​Juntar mangas era uma deliciosa tarefa, permitindo-nos não apenas assegurar a merenda do dia, mas também nos proporcionavam vivências marcadas por momentos de intensas brincadeiras e felicidade e, por vezes, algumas peraltices, como, por exemplo, quando “roubávamos” as mangas do tio João de sobre o seu jirau. É que, como ele sabia que nós iríamos às cinco horas, ele acordava antes de chegarmos e juntava as melhores mangas e as escondiam em um paneiro que era guardado sobre o jirau. Descobrimos o esconderijo e levávamos, algumas; as melhores.


Afora isso, costumamos apanhar as mangas escondidos da proprietária da mangueira, lembro muito bem que fazíamos isso na mangueira da dona Luiza, pois ela não gostava de dividir suas mangas. Então, aproveitávamos o  momento em que estava na sua madorma (cochilo costumeiro dos araienses, após o almoço). Enquanto dona Luiza cochilava, arrumávamos uma vara cumprida e de galho em galho íamos cutucando as mangas oriscas, garantindo a “boia” do dia. Até que por um descuido nosso, talvez, um barulho das quedas das mangas ou até mesmo das cutucadas, dona Luiza acordava e, muito brava, coloca-nos para fora de seu quintal. Deixávamos o pé de mangueira às carreiras e com muitas risadas.


Outras saborosas experiências figuravam-se quando comíamos manga verde. Esse costume alimentar era corriqueiro e tinha a competência de juntar em uma roda comensal debaixo da mangueira um número significativo de crianças, as quais com uma cuia com sal e algumas mangas verdes garantiam a merenda daquele dia, regada a muitas brincadeiras, conversas de criança e muitas caretas, estas últimas provocadas pelo azedume que é próprio das mangas verdes.


Ao que parece, as experiências performadas com e pela manga na minha infância em Araí podem ser pensadas como fenômenos comensais, que, ao serem coletivizados, afetaram e quiçá afetam os modos de viver do povo paraense, particularmente daqueles que povoam os territórios amazônidas e caboclos do nordeste paraense, como a comunidade de Araí.


Antes de findar, preciso relatar uma experiência que ajuda a entender os atravessamentos da manga na vida paraense e o lugar que ela ocupa em nossas experiências, falo de um certo dia, quando, ao terminar o recreio e, após alguns longos minutos, percebi que alguns estudantes não haviamretornado (sou professor de Sociologia da Educação Básica de Belém). Resolvi procurá-los, encontrando-lhes debaixo de um pé de mangueira que havia no quintal da escola.


Crédito da foto: Arquivo pessoal.


​Por fim, não seria exagero afirmar que, mais que um alimento, a manga é antes uma linguagem que comunica  e marca as identidades amazônicas e paraenses de modo tal que por essas bandas do norte brasileiro não basta comê-la, como uma “obrigação”, é costume degustá-la com farinha.











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